terça-feira, 9 de novembro de 2010

Encerramento do Diário Literal

Esta é a última postagem deste blog, depois de quase três anos de postagem de nossas despretensiosas resenhas de livros, com períodos de assiduidade e outros de ausência.

Agradecemos aos nossos visitantes.

Deixamos uma frase de despedida:
"Penso noventa e nove vezes e nada descubro; deixo de pensar, mergulho em profundo silêncio - e eis que a verdade se me revela." (Albert Einstein)


Namaste!

sábado, 6 de novembro de 2010

"Asfalto selvagem - Engraçadinha seus amores e seus pecados" - Nelson Rodrigues

Engraçadinha é uma adolescente voluptuosa e muito bonita (quase uma "Lolita" de Nabokov), apaixonada pelo primo Sílvio, que está casamento marcado com Letícia, também prima. Mesmo noiva de Zózimo, rapaz de humildade exagerada, simplório, arma uma trama para desfazer o enlace matrimonial, seduzindo Sílvio e simulando uma gravidez. O pai, Dr. Vasconcelos, político, ao saber, confessa à filha que Sílvio não é seu primo, mas irmão, exigindo e até contratando um profissional que a faça abortar, além de reconstituir a virgindade perdida.
Nesse período, vários personagens aparecem na trama: as tias velhas de Engraçadinha, Tia Ceci, Tia Zezé e seu marido Nonô, Odorico Quintela, entre outros.
Além da narrativa descritiva dos acontecimentos, cada personagem tem seu pensamento dissecado, mostrando a lascívia, os desejos obscuros, pecaminosos, as verdades que não são ditas ou admitidas. Mas nem todos os pensamentos conseguem ser guardados, a exemplo do Odorico, que, para relatar os motivos pelo qual o juiz teria cometido suicídio, fala sobre uma possível paixão do Dr. Arnaldo pela filha, reflexo de seu próprio desejo.
A esse tempo, Sílvio já sente-se muito atraído por Engraçadinha e não consegue resistir a seus encantos. Ao saber que trata-se de sua irmã, mutila-se, para extirpar o desejo que sentia. Dr. Arnaldo, não conseguindo o perdão do filho, suicida-se.
Engraçadinha casa-se com Zózimo, descobre-se realmente grávida de Sílvio e decide ter o filho. Daí vivem 20 anos, ela agora uma protestante fervorosa, esquecida dos prazeres do mundo que a assaltavam, num casamento sem amor, uma vida doméstica, onde cada dia é uma repetição de obrigações e orações, para criar os cinco filhos e cuidar da casa.
Nesse momento, ressurge o Juiz Odorico Quintela, que 20 anos antes era procurador, o mesmo que discursara no enterro do seu pai, bem lembravam Engraçadinha e Zózimo.
Ela vê na filha mais nova, Silene, dos cinco que teve, um espelho dela mesma: a devassidão e luxúria. A adolescente namora Leleco, menino inibido, seu primeiro parceiro na cama que, ao se ver afrontado por três amigos, assassina um deles.
Dr. Odorico, para conquistar aquela que foi objeto de seus desejos pelos longos 20 anos, presenteia a família, faz favores, tudo planeja para seduzir Engraçadinha.
Como "membro do judiciário", faz-se valer de jornalistas e intelectuais da época para alimentar sua retórica, usa também seu prestígio para obter favores e influenciar decisões.
Nesse tempo também, ressurge do passado Letícia, que também, durante os 20 anos, ainda nutre o amor doentio pela prima e vê o espelho dela em Silene, que tanta seduzir.
A volúpia da juventude arrebata Engraçadinha, quando conhece Luís Cláudio, não resiste e o faz seu amante.
O romance é entrançado por personagens passageiros, diálogos tricotados ao acaso, assim fazendo críticas a literatos, políticos e personalidades da época, fazendo um retrato histórico - início dos anos 40. Uma obra de fôlego, que se consegue também ler sem que se dê conta de seu extenso volume.
Incesto, pederastia, luxúria, traição, corrupção, vida familiar, casamentos em crise, amores doentios e obsessivos... temas tão bem trabalhados por Nelson Rodrigues.
A obra foi transporta para cinema em 1981, dirigido por Haroldo Marinho Barbosa, tendo como protagonistas Lucélia Santos, Luís Fernando Guimarães, Wilson Grey, Daniel Dantas, entre outros. Também foi feito em forma de minissérie em 18 capítulos, num canal de TV aberto, em 1995, sob direção de Carlos Gerbase, João Henrique Jardim e Denise Saraceni, participando como elenco Cláudia Raia, Alessandra Negrini, Paulo Betti, Pedro Paulo Rangel, Hugo Carvana, entre outros.
Vale a pena ser lido, devorado, interpretado e sentido, numa análise na natureza humana de forma quase primitiva, mas bem realista.
Excelente leitura!

Passagens:

"[Dr. Bergamini] aprendera, em vinte anos de ginecologia, que a mulher normal, equilibrada, é capaz de amar dois, três, quatro ao mesmo tempo. O amor múltiplo é uma exigência sadia de sua carne e de sua alma. A exclusividade que ela dá, e que o homem exige, representa um equívoco ou, pior: - um aviltamento progressivo fatal. Cada minuto de felicidade significa assim um novo desgaste. Há tão pouco amor por isso mesmo: - porque o degradam com deveres, com obrigações. Como dever, como obrigação, a fidelidade é um virtude vil!"

"...Dr. Arnaldo fez uma reflexão que o surpreendeu e, mesmo, o consternou: - 'Só um débil mental pode casar-se na presunção de que o casamento é divertido, variado ou simplesmente tolerável. É divertido como um túmulo'. Essa idéia, que jamais lhe ocorrera, deixou-o estupefato. Estupefato e indignado consigo mesmo. - 'Eu pensei isso!', foi seu estupor honesto."

"...o juiz estava achando deprimente era o Zózimo. Por detrás de sua polidez, fazia uma generalização brutal: - 'Marido é assim! Camisa rubro-negra sem mangas, axilas abundantes e obscenas, de chinelos e sem meias!' - 'De resto' - concluía - 'é preciso muito cinismo para que um casal, qualquer casal, chegue às bodas de prata!'"

"- (...) O amigo não interessa! O amigo trai na primeira esquina! - e repetia, numa certeza enfática: - Na primeira esquina! Ao passo que o inimigo não trai nunca. O inimigo é fiel, percebeu? O inimigo é o que vai cuspir na cova da gente!"

"Guimarães Rosa pode ser um gênio. Mas é a maior monotonia verbal de todos os tempos. Dirá você que é um problema de acomodação auditiva. Mas, das duas, uma: ou o sujeito aceita o Guimarães Rosa e repudia os outros; ou prefere os outros e chuta o Guimarães Rosa"

"'Só os bêbados se confessam. Eu, se fosse carola, enchia a cara antes do confessionário. Para contar tudo na batata'. Não acreditava na sinceridade dos sóbrios, dos lúcidos. E acrescenta, num lampejo inesperado: - 'A confissão católica é, para a alma feminina, como um toque ginecológico, sem luva'."

"O Juscelino dá confiança demais à juventude, corteja a juventude. Mas escuta cá: - o que é o jovem? O jovem ou é um Rimbaud ou um débil mental, digno do SAM'."


quarta-feira, 3 de novembro de 2010

"A Outra Volta do Parafuso" - Henry James


Escrito em 1898, publicado originalmente sob a forma de artigos entre janeiro e abril em uma revista inglesa, o livro "A Outra Volta do Parafuso" é narrado em primeira pessoa, para fazer entender a existência de relatos feitos, anos antes, pela irmã da protagonista que relata a história. A protagonista uma jovem peceptora contratada para cuidar de duas crianças, cujos pais morreram em um acidente.

Aos 20 anos de idade, a mais nova das filhas de um pastor resolve aceitar um emprego como preceptora dessas crianças, Flora e Miles, em substituição à antiga preceptora que falecera de forma misteriosa, a Srta. Jessel.

Estranhos acontecimentos tomam conta da rotina de trabalho, como aparições da empregada antiga que a protagonista substituía, e de Quint, um antigo funcionário e suposto namorado da Srta. Jessel, também morto. Começamos, então, a perceber a influência que tais personagens sobre as crianças. Isso leva a nova preceptora a investigar o que está acontecendo, com o auxílio de Mrs. Grose, que cuidava dos afazeres domésticos.

O interesse pelos fatos transformam-se em obsessão, confundindo, no decorrer da leitura, o real e o imaginário, com reflexo na forma como a preceptora vê as crianças e em seu próprio comportamento.

Trata-se de uma narrativa que se chama de "fantástica", ou seja, permeada por fantasmas. Mas, às vezes, temos a impressão de que a protagonista está mesmo é sofrendo de uma doença mental. Isso torna a narativa muito rica e instigante. Na dimensão que parece fantasmagórica, percebe-se um tom de sobrenatural, mas é um sobrenatural discreto, sutil. Não é uma história de terror, como são geralmente as histórias do sobrenatural.

As personagens são, na verdade, ambivalentes e com muitas contradições, refletindo o gênero humano de forma muito criativa.

Um livro que nos prende do início ao fim e, ao final... bem, aí vocês aproveitem, leiam e encontrem o final dessa trama.

Boa leitura!

Um trecho do livro para estimular a leitura:

Um dos pensamentos que me acompanhavam [...] era que seria encantador como um conto encantador se eu me encontrasse subitamente com alguém. Alguém apareceria, de repente, na volta do caminho e ficaria parado a fitar-me, sorrindo, com ar de aprovação. Não pedia mais do que isso: pedia apenas que ele soubesse, e a única maneira de estar certa de que ele o sabia teria sido lê-lo na bondosa expressão de seu belo rosto. Isso estava claramente presente em minha imaginação – isto é, o rosto – quando, na primeira dessas ocasiões, no fim de um longo dia de junho, detive-me subitamente, ao sair de trás de uns arbustos e deparar com a casa à minha frente. O que me pregou no chão – chocando-me muito mais do que qualquer outra visão o poderia ter feito – foi a sensação de que a minha fantasia, num abrir e fechar de olhos, tornara-se real. Lá estava ele!... mas muito no alto, além do relvado, no próprio topo da torre [...].